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segunda-feira, 28 de julho de 2008

“A dialética do esclarecimento: o olhar crítico sobre a história do homem.”




Introdução
Este trabalho tem por objetivo discutir alguns pontos da filosofia da história de dois autores da chamada Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, que junto com outros pensadores foram responsáveis pela criação de um corpo teórico muito vasto e heterogêneo em ciências humanas, chamado tradicionalmente de Teoria Crítica da Sociedade. Estes dois autores, em conjunto com outros como, por exemplo, Herbert Marcuse, Erich Fromm, Friedrich Pollock, e Walter Benjamin – que não se manteve tão próximo ao Instituto como os outros e morreu prematuramente em 1940 –, dedicaram suas atividades, desde meados da década de 20, a pesquisas e publicações de ensaios, artigos e livros de temáticas díspares como sociologia, filosofia da história, estética, economia e filosofia da ciência, objetivando realizar uma crítica ampla e profunda das estruturas epistemológicas contemporâneas, e da organização da sociedade ocidental, incluindo análises sobre o capitalismo no século XX, a situação dos trabalhadores, a estrutura familiar na sociedade, estudos sobre música contemporânea, literatura ocidental e indústria cultural.
Estes diversos autores reuniram-se em torno da criação e fortalecimento do Instituto de Pesquisas Sociais (Institut für Sozialforschung) ligado a Universidade de Frankfurt, que já existia desde 1924 e fora criado com o intuito de realizar pesquisas sociais com um arcabouço teórico marxista. Após um período de estruturação, o Instituto deu sua guinada para o aprofundamento de sua produção teórica na década de 30, após a nomeação de Max Horkheimer, já parte da fileira de membros do Instituto, como diretor em 1931. Os artigos e ensaios de seus pesquisadores passaram a ser publicados na Zeitschrift für Sozialforschung, na qual em seus primeiros números já se firmava os caminhos a serem trilhados por seus membros, como, por exemplo, em ensaios sobre a crise do sistema econômico capitalista, ou sobre a dimensão psicológica da pesquisa social, em que autores como Horkheimer e Fromm utilizavam-se tantos dos pressupostos teóricos marxistas como da psicanálise freudiana, integração que irá perpetuar-se ao longo da produção teórica da maior parte dos membros do Instituto. Mesmo tratando-se de pensadores de origens acadêmicas e interesses tão distintos, “no pensamento da Escola de Frankfurt havia uma coerência essencial que influenciava praticamente todo seu trabalho e em áreas diferentes” e “inclusive quando se desenvolveram conflitos sobre alguns pontos (…), estes estavam articulados por um vocabulário comum e estavam embasados em um conjunto de pressupostos mais ou menos compartilhados”.
Neste trabalho serão analisadas apenas as primeiras discussões filosóficas conjuntas de Adorno e Horkheimer, que são mais aproximadas entre si, principalmente com a publicação da Dialética do Esclarecimento em 1944, de autoria de ambos, após o exílio do Instituto para Nova Iorque motivado pela perseguição político-ideológica e racial perpetuada pelo regime nazista na década anterior.
Cabe ressaltar que os autores em questão não possuem uma filosofia da história bem delimitada, e nem se propuseram a discutir essa questão, mas tratam do tema e de seus conceitos ao longo de seus ensaios, principalmente no primeiro estudo desta obra conjunta, o “Conceito de Esclarecimento” e no fragmento filosófico “Para uma crítica da filosofia da história”, da seção “Notas e Esboços” da obra.
A intenção deste trabalho é tentar expor a maneira pela qual estes dois autores entendem o desenvolvimento das idéias de esclarecimento e progresso no ocidente, que tradicionalmente fazem parte de concepções modernas da história que enxergam uma espécie de melhora das condições da humanidade, a existência de uma idéia perfectibilidade humana, e a ampliação ao longo dos séculos de nossa liberdade em relação ao mundo, idéia a qual é criticado fortemente por ambos.
Muito já se foi escritos sobre os chamados frankfurtianos, mas neste trabalho foi utilizado como obra complementar para a análise o livro Os arcanos do inteiramente outro de Olgária Matos, uma extensa tese de doutoramento que discute os conceitos de razão e história desta escola, tão discutidos por seus membros, principalmente nas obras de Benjamin, Adorno, Horkheimer e Marcuse. A autora parte das análises, feitas por Benjamin, sobre os conceitos de história a partir da literatura alemã romântica e barroca; passando, em seguida, sobre a discussão de Adorno e Horkheimer sobre o Esclarecimento e o Iluminismo; e finaliza com uma discussão sobre as perspectivas desses autores que antes de apenas analisarem nossa sociedade ocidental contemporânea, tentaram criar uma filosofia social crítica. Olgária Matos realizou uma ampla pesquisa acerca das origens do pensamento frankfurtiano, analisando as relações dos autores com as obras de Hegel, Nietzsche, Marx, e sua crítica e reencontro com Kant. Para este trabalho, entretanto, será utilizado apenas o que a autora se referiu na temática da filosofia da história pela Escola de Frankfurt, para não se estender em demasia sobre assuntos não concernentes à temática.
A análise do esclarecimento e do chamado progresso do pensamento humano.
Os autores analisados neste trabalho, em sua produção conjunta Dialética do Esclarecimento, traçam certa análise do desenvolvimento do esclarecimento na sociedade ocidental, desde os primórdios de seu surgimento, o qual eles situam na passagem da mitologia para a narrativa epopéica. Este período de surgimento do esclarecimento não se trata do mesmo pelo qual a maioria dos autores contemporâneos costuma defini-lo, ou seja, o período iluminista do final do século XVIII. É nesse século que Kant e outros pensadores lançam as bases da racionalidade ocidental - que havia dado seus primeiros passos com os modernos -, assim como os ideais de libertação política das antigas amarras do que os iluministas consideravam a ignorância do obscurantismo religioso e do Antigo Regime encontram luz com as Revoluções Francesa e Americana. Esse esclarecimento setecentista encontra suas melhores definições em Kant, que o define como “a saída do homem de sua menoridade, da qual é o próprio culpado” – enquanto que “a menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem”. Como os próprios autores definem na Dialética, esta saída kantiana da menoridade se dá por meio da racionalidade.
Mas eles buscam as origens do esclarecimento de outra maneira, procurando estendê-la não aos anos do Iluminismo, mas muito antes, na origem da civilização, e têm como objetivo principal entender sua dialética intrínseca, que une os conceitos de libertação e iluminação, os quais sempre propagaram os pensadores iluministas, com o conceito de dominação – fazendo, deste modo, uma crítica ao conceito tradicional de esclarecimento. A primeira sentença do “Conceito de Esclarecimento”, primeira parte da Dialética, já define a crítica, pois para eles “no sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”.
Horkheimer e Adorno, assim como Nietzsche havia feito, voltam à Antigüidade clássica para encontrar as origens do “desencantamento” do mundo, a principal característica do esclarecimento, ao invés de se ater apenas na Ilustração e nas revoluções modernas, procurando deste modo empregar um conceito muito mais amplo e profundo de esclarecimento. Esse processo de desencantar o mundo da obscuridade da magia, dos mitos, e da imaginação, e substituí-los pela razão e o saber deve, para tanto, praticar uma violência contra a natureza, dominá-la, para, de acordo com seu próprio programa, libertar os homens, colocando-os no lugar de senhores do mundo. Mas somente o “pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos”. Assim que se coloca, portanto para Adorno e Horkheimer, que em conjunto com este processo de dominação da natureza das coisas, do objeto, em prol de uma libertação do sujeito, há um processo de dominação do próprio sujeito. Processo esse que não encontra nenhuma barreira, o que une a busca pela autoconservação, de libertação, a um caminho de autodestruição da própria humanidade esclarecida.
Para Adorno e Horkheimer, devemos buscar as origens desse processo no momento histórico em que se dá a transição entre o mito e o saber, o momento primeiro do desencantamento do mundo, que buscou destruir o animismo mitológico e as antigas tradições. Os autores percebem que a Odisséia de Homero mantém uma grande carga simbólica desse momento, presente na trajetória de Ulisses, o herói astucioso que foge de todos os perigos impostos pelos deuses, a natureza e seus monstros e espíritos, em direção a libertação promovida por sua própria razão, uma espécie de trajetória da racionalidade que impõe o sujeito em oposição ao objeto por meio da dominação do primeiro ao segundo. É por meio dos exemplos tirados da viagem de Ulisses, dos cantos da Odisséia, que os autores exemplificam o caminho traçado pela própria razão na história. A escolha da Odisséia também se insere na idéia de que o mito entre os gregos, assim como outros povos, também já era esclarecimento, pois vemos na Dialética que a passagem do mito primitivo ao mito patriarcal, com o estabelecimento da hierarquia olímpica já continha estes primeiros elementos de dominação.
O rito e a magia transformaram-se em doutrina religiosa, “capturados pelo logos filosófico”. “Os mitos, como os encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo (…)” do esclarecimento. “O lugar dos espíritos e demônios locais foi tomado pelo céu e sua hierarquia; o lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, pelo sacrifício bem dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando”.
As origens desse desejo de libertar o homem, opô-lo a natureza, encontram-se, de acordo com a análise de Olgária Matos da Dialética, na angústia que sofre o eu em sua busca pela autoconservação. Os autores são claramente inspirados por Hegel, que já havia traçado o que para ele se tratava da trajetória do espírito universal em sua Fenomenologia, quando o espírito deve atravessar os caminhos sofridos da autoconsciência, que se afirma como consciência-em-si em oposição às outras consciências. “A idéia da existência de algo estranho, da existência de um outro de si mesmo é a fonte da angústia; com isto, o homem se ilude acreditando liberar-se do medo quando não existir mais nada de desconhecido, quando nada permanecer fora da possibilidade de ser redutível ao seu poder. É isso que determina o trajeto da desmitologização”. É neste ponto que surge a subjetivação da razão, que crê ter se desprendido do objeto, da natureza – e assim a dominado – e atingindo a libertação do homem, que se coloca como senhor do mundo; a ideologia por trás do esclarecimento.
Essa primeira relação do homem com natureza se dá nas “cosmologias pré-socráticas”, que “fixam o instante da transição” entre mito e esclarecimento. Essas cosmologias primitivas e animistas que marcam a vida como matéria e espírito indissociáveis continham a identificação do homem com o seu redor, representada pelos espíritos e elementos – o “meio, de que serviam os homens, no ritual mágico, para tentar influenciar a natureza”. Os homens por meio da magia tentam dominar a natureza pela “mimese”, como quando o sacerdote se utiliza de máscaras para espantar os espíritos, cada máscara para cada espírito, identificando-se com a natureza. “O que acontece à lança do inimigo, à sua cabeleira, a seu nome, afeta ao mesmo tempo a pessoa.” O esclarecimento surge com o processo de desencantar das coisas, no qual deve vencer a superstição e imperar sobre o mundo ao redor. “Doravante, a matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas.” A razão deve dominar o outro não por mimese, essa identificação direta com a natureza, mas pela sua abstração e a separação do sujeito do objeto. Para o esclarecimento isso que ele define como projeção do subjetivo no natural, realizada por meio da crença nos espíritos, é o medo que rege a vida dos homens, o qual deve ser extinto, para o bem da libertação dos homens. A natureza é então transformada em mera objetividade sem sentido, separado do sujeito, doador de todo o sentido. A antiga ligação entre as coisas, a pessoa e seu nome ou objeto, por exemplo, é negada e surge a “onipotência dos pensamentos”, os pensamentos tornados “autônomos em face dos objetos”. O eu procura sua autoconservação, esse que é o medo imemorial de se perder, perder o próprio eu.
Olgária Matos analisando a Dialética afirma que “tanto a mitologia quanto o Iluminismo encontram suas raízes nas mesmas necessidades básicas: sobrevivência, autoconservação e medo”, o medo de se perder é que gera a volta do eu para si mesmo, esse primeiro passo em direção à negação do outro, e o “recolhimento egocêntrico” em si mesmo.
O esclarecimento ao pensar-se livre do que o prendia à natureza, não encontra, portanto, nenhum limite, sua própria potência não vê outro do que um horizonte infinito para si, ao mesmo tempo em que os autores estabelecem um fim possível para essa falta de limite na “calamidade triunfal”. Esta é a ideologia por trás do esclarecimento, quando os homens pensam que esclarecidos estão libertos da natureza, tanto exterior como interior, quando na verdade não o estão. Esta “cegueira” se dá pelo desejo de autoconservação, na qual estão presentes os elementos de autodestruição. A violência contra o outro é violência contra si, e o esclarecimento não é outra coisa além de mito, assim como o mito já continha elementos de esclarecimento. A natureza, o outro, se trata tanto daquilo que não sou eu, como do que está dentro de mim e não controlo. O homem esclarecido é aquele que crê ter se libertado da prisão da natureza, do mito o qual o mantinha preso a “entidades ontológicas” e também dos instintos, o que há dentro de si que não se pode controlar. “O eu que, após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais como algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora da ação. Segundo o juízo do esclarecimento (…) quem se abandona imediatamente à vida sem relação racional com a autoconservação regride à pré-história. O instinto enquanto tal seria tão mítico quanto a superstição (…)”.Dominação, portanto, não se trata apenas da dominação da natureza física, mas de tudo aquilo considerado por uma subjetivação exacerbada como o outro passível de dominação.
Em uma passagem que resume esse processo da civilização, dizem que “nos momentos decisivos da civilização ocidental, da transição para a religião olímpica ao renascimento, à reforma e ao ateísmo burguês, todas as vezes que novos povos e camadas sociais recalcavam o mito, de maneira mais decidida, o medo da natureza não compreendida e ameaçadora – conseqüência de sua própria materialização e objetualização – era degradado em superstição animista, e a dominação da natureza interna e externa tornava-se o fim absoluto da vida. (…) Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. (…) Forçado pela dominação, o trabalho humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a cair sob o seu influxo, levado pela mesma dominação”.
Adorno e Horkheimer fazem, portanto, uma história não dos fatos e acontecimentos dos homens, a história política tradicional, das guerras e das grandes personalidades, e nem mesmo fazem uma história materialista tradicional, como Marx havia exposto, por exemplo, em sua obra A Ideologia Alemã, sobre a trajetória dos modos de produção; fazem ao invés disso uma espécie de reconstrução de um momento sem determinação cronológica certa na história antiga da civilização, utilizando-se de uma epopéia da época, a Odisséia, para retirar exemplos. Os autores nesta época ainda têm um olhar guiado pelo materialismo histórico e suas premissas, mas suas obras mostram um interesse conjunto em entender o problema da dominação que se esconde por detrás da ideologia por outros caminhos analíticos, como o estudo da cultura, e as análises psicanalíticas do inconsciente dos homens e da sociedade – ainda à luz da perspectiva sócio-histórica e tendo em mente a emancipação do mundo.
Os autores na Dialética fazem uso de grande quantidade de fontes de antropologia e história, como pode ser visto com um olhar mais acurado em sua Bibliografia, mas não fazem eles próprios uma análise nesse sentido. Essa espécie de reconstituição filosófica do período primordial da humanidade que fizeram, já havia sido tentada antes deles por muitos outros, como Rousseau, por exemplo, mas eles agora tinham à sua disposição um vasto material de pesquisa histórica, arqueológica e antropológica. As expedições científicas européias para fora da Europa ocidental no final do século XIX e início do século XX tiveram por resultado diversas pesquisas sobre as culturas antigas na Grécia e no Oriente Próximo e as culturas ainda existentes de povos antes desconhecidos aos europeus, assim como novos achados e novas traduções de textos antigos, para não deixar de citar toda a nova análise psicanalítica que fez uso de exemplos buscados na mitologia para entender os fundamentos inconscientes da sociedade ocidental, lançando um novo olhar sobre essa espécie de bibliografia da Antigüidade.
Na Dialética, os autores ao invés de traçar uma sistematização geral, em seu desenvolvimento através de eras e períodos, buscam em alguns pontos-chave da história os elementos necessários para criar sua teoria dialética sobre o esclarecimento. Fazem uma história das idéias no ocidente, mas não de maneira sistemática, que procurasse traçar uma cronologia do desenrolar progressivo da idéia de esclarecimento na história, mas, pelo contrário, procuram discutir em forma de ensaio os conceitos e os exemplos, trabalhando a dialética inerente ao esclarecimento. Não fazem uma análise historicista, buscando dados para criar um modelo histórico generalizado sobre esse momento da humanidade, mas o analisam filosoficamente. Assim como Freud, que analisou o totemismo e os tabus das sociedades ditas primitivas para encontrar elementos de explicação sobre certos comportamentos infantis e em doentes mentais na atualidade, eles buscam os elementos desse momento primitivo para compreender o desenrolar desencantado da moderna história esclarecida.
A análise dos autores do esclarecimento se faz por meio de um olhar detalhado em obras literárias que funcionam como símbolos de diferentes instantes a este desenrolar. Em seu primeiro excurso analisam a epopéia homérica, o surgimento do processo de luta do esclarecimento contra a mitologia; enquanto que no segundo excurso, o fazem com as “crônicas escandalosas”, as obras dos “escritores sombrios da burguesia”, como Sade e Nietzsche.
Na análise da Odisséia os autores buscam encontrar os elementos do surgimento do esclarecimento em oposição ao mito, na trajetória descrita acima. Ulisses ao se aventurar pelos mares desconhecidos, perdido em sua volta para casa, teve que enfrentar todo o tipo de infortúnio. São muito ilustrativas as passagens que os autores analisam, nas quais apontam o que há de mais moderno nessa epopéia antiga, para depois mostrar a ancestralidade de muitas características modernas. Comparam Ulisses ao burguês moderno na passagem das Sereias, em que o herói tapa os ouvidos dos remadores com cera para que eles não ouçam o canto maravilhoso e caiam em perdição, enquanto pede para amarrá-lo no mastro, e assim poder ter um curto contato com a beleza do canto. “Amarrado, Ulisses assiste a um concerto, a escutar imóvel como os futuros freqüentadores de concertos”, enquanto que “alertas e concentrados, os trabalhadores têm de olhar para a frente e esquecer o que foi posto de lado”. “Assim a fruição artística e o trabalho manual já se separam na despedida do mundo pré-histórico. A epopéia já contém a teoria correta. O patrimônio cultural está em exata correlação com o trabalho comandado, e ambos se baseiam na inescapável compulsão à dominação social da natureza”. Falam também do surgimento da cultura ocidental patriarcal quando discorrem sobre a maga Circe e o papel da mulher na sociedade, entre outras análises com esse viés de comparação do moderno com o antigo.
Já Sade e Nietzsche escrevem em um momento distinto, quando já havia um alto nível de desenvolvimento da racionalidade moderna e os ideais políticos e econômicos característicos de nossa era encontravam a luz. Frente a essa situação, estes autores expuseram o espírito de seu tempo de maneira exagerada e considerada escandalosa. “O esclarecimento dos tempos modernos esteve desde o começo sob o signo da radicalidade: é isso que o distingue de toda etapa anterior da desmitologização. Quando uma nova forma de vida social surgia na história universal juntamente com uma nova religião e uma nova mentalidade, derrubavam-se os velhos deuses, juntamente com as velhas classes, tribos e povos”. As obras desses autores proferiram brutalmente a verdade chocante da situação ao seu redor com o intuito de apontar seu horror, ao contrário de todos os apologetas da burguesia, que para “distorcer as conseqüências do esclarecimento” recorreram “a doutrinas harmonizadoras”. Sade em suas obras “não deixou a cargo dos adversários a tarefa de levar o esclarecimento a se horrorizar consigo mesmo” e ao invés de escrever sobre as utopias políticas, ou a falsa idéia da sociedade harmoniosa, fez dele alguém que tentou salvar o esclarecimento, mostrando o que nele há de pior. “Pois a chronique scandaleuse de Justine e Juliette – que produzida em série, prefigurou no estilo do século dezoito o folhetim do século dezenove e a literatura de massas do século vinte – é a epopéia homérica liberada do último invólucro mitológico: a história do pensamento como órgão de dominação. Assustado com a própria imagem refletida no espelho, o pensamento abre uma perspectiva para o que está situado além dele”.
Os autores buscam explicitar nas análises dessas obras as características contraditórias inerentes ao esclarecimento, tanto as de autoconservação e libertação do homem como as de autodestruição e dominação, em toda sua trajetória através da história da civilização. Em uma frase do segundo excurso que resume a idéia, dizem Adorno e Horkheimer que “cada passo foi um progresso, uma etapa do esclarecimento. Mas, enquanto todas as mudanças anteriores (do pré-animismo à magia, da cultura matriarcal à patriarcal, do politeísmo dos escravocratas à hierarquia católica) colocavam novas mitologias, ainda que esclarecidas, no lugar das antigas (o deus dos exércitos no lugar da Grande Mãe, a adoração do cordeiro no lugar do totem), toda forma de devotamente que se considerava objetiva, fundamentada na coisa, dissipava-se à luz da razão esclarecida”.
Em sua tese, Olgária Matos trata a filosofia da história destes autores como sendo “trans-histórica”. “Observa-se, portanto, que a noção de Iluminismo é polissêmica entre os frankfurtianos, referindo-se tanto a um período da história da filosofia e das idéias, quanto a uma atitude ou tendência epistemológica, ética e política anterior e posterior ao século XVIII. O conceito é trans-histórico e funda-se no exame da origem e das formas de dominação”. O plano de desenvolvimento cronológico do conceito é outro, diferente do tradicional que situa as origens do esclarecimento na idade moderna, e de fato no período iluminista. “(…) cronologicamente aquém e além dessa modernidade datada, [o texto] encontra a atitude iluminista ali mesmo onde a idade moderna a negaria, isto é, no coração do mito (o passado), e ali mesmo onde a idade moderna não o reconheceria, isto é, no coração da ciência (o presente)” Ela reafirma a idéia de que os autores fazem uma história “subterrânea e invisível”, analisando o inconsciente por trás da história do homem e encontrando as origens dos termos do período ilustrado em um momento pré-ilustrado.
Outra análise que Olgária Matos faz da história na Dialética do esclarecimento, é a de que a visão da história para os autores está convertida em uma visão de “história natural”. Se história é o que os homens fazem mudar, natureza é o destino. “O iluminismo naturalizou a história”, pois em seu ímpeto violento para destruir o mito e a idéia de destino, o esclarecimento voltou “suas armas” para si mesmo. A idéia exposta aqui anteriormente de que o antigo já continha elementos do novo e o moderno é a continuação do antigo surge desse conceito de história. “A própria mitologia desfecha o processo sem fim do esclarecimento, no qual toda concepção teórica determinada acaba fatalmente por sucumbir a uma crítica arrasadora, a crítica de ser apenas uma crença, até que os próprios conceitos de (…) esclarecimento tenham se convertido em magia animista”. O esclarecimento como mito é a história do retorno do “sempre idêntico”, a “história natural”.
A idéia de Teoria Crítica dos autores está intimamente ligada a sua concepção de história. É importante lembrar que tomaram diversas posições em diferentes momentos de sua trajetória intelectual, mas ela é toda perpassada pela idéia de emancipação do homem.
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico” – o ‘perigo’ sendo o entregar-se às classes dominantes como seu mero instrumento, como afirma Benjamin na sexta de suas teses em Sobre o conceito da história. Diz, na sétima tese, que essa maneira de ver a história, esse historicismo, com sua indiferença, ao tentar buscar a verdade dos fatos, acaba por dar prioridade aos vencedores, estabelecendo com esses uma relação de empatia. São esses vencedores apontados pela história que têm como herdeiros todos os que dominam depois deles, até hoje. Nessa tese, Benjamin faz uso literário de uma imagem muito famosa dentre seus escritos, a do cortejo triunfal dos vencedores de todos os tempos, marchando por cima dos dominados, levando como despojos os bens culturais, sobre os quais o materialista deve refletir com horror, pois “nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento da barbárie”, assim como o “processo de transmissão da cultura” que perpetua essa incessante barbárie geração após geração.
Adorno e Horkheimer em sua obra, ao discutir o ser humano e o desenvolvimento de suas obras espirituais e materiais que culminaram em nosso mundo atual, realizam uma crítica dos conceitos puramente positivos de esclarecimento e progresso presentes nessa “história dos vencedores”. Os autores, em relação aos outros críticos do progresso, como os decadentistas ou os irracionalistas diferem deles neste aspecto. Não se trata de negar a razão ao entender toda a sua trajetória como uma de dominação. Fazer isto seria voltar a condição que encontra figura na passagem da Odisséia, em que Ulisses e seus marujos param na ilha dos comedores de lótus. Os habitantes passam o dia alimentando-se de lótus, completamente hipnotizados e entorpecidos pelo sabor divino da flor. Nesta ilha os homens eram felizes, comungados com a natureza, no ato de comer a lótus. “Uma vez comida a flor, os homens mergulham em uma relação harmoniosa com o seu meio. Mas a harmonia e a felicidade criadas não são frutos de um trabalho autoconsciente”. Adorno e Horkheimer ao fazerem sua crítica não a fazem em defesa de um irracionalismo contra racionalidade dominante; apontam os elementos que potencialmente levam à decadência a fim de prevê-los e não de modo resignado.
Sem entrar na questão do desenvolvimento das idéias destes autores ao longo de suas vidas, o conceito de história na época da Dialética, já continha elementos de uma revisão ao marxismo tradicional e sua concepção de história contendo um telos, a experiência histórica engendrada no proletariado e na perspectiva da Revolução como ponto de ruptura entre uma longa (pré-)história de dominação e luta de classes, e uma futura história utópica socialista. A idéia de emancipação é presente na concepção dos autores, mas como lembra Olgária Matos, citando Horkheimer, “a própria situação do proletariado não constitui nesta sociedade, a garantia do conhecimento correto”. Referindo-se aos autores, diz que “tais questionamentos [acerca da revisão do marxismo] não significam uma renúncia ao projeto emancipatório. Trata-se, ao contrário, de colocar a emancipação como problema, de acolher em sua indeterminação, desprovida de garantia, ‘as exigências de uma filosofia da liberdade’”. O pessimismo e as críticas generalizadas, característicos dos autores, não são resignação, mas um desejo de não deixar-se esquecer de todo o sofrimento vivido pelas gerações anteriores, sendo uma maneira de protestar contra toda essa “história dos vencedores”. “Para os frankfurtianos, a História é sinal de descontinuidade, seu processo está permanentemente em aberto.”. Os autores na época da Dialética fazem uma Filosofia da História em que a história “é vista como soma de sofrimentos sem nenhum sentido, de tal modo que a [Dialética do Esclarecimento] renuncia a uma história material como objeto de conhecimento; a história como correlato de uma teoria unitária, como algo que se constrói, é “o horror”: um mesmo conteúdo negativo se manifesta em uma multiplicidade enganadora de formas. O otimismo marxista negligencia o aspecto sombrio da história: não teme, segundo a conjuntura, apelar a uma racionalidade de tipo hegeliano, a uma concepção positivista de Ciência e mesmo a um ‘irracionalismo espontaneísta da violência’. A Teoria Crítica mantém-se à distância daquelas teorias que se aliam a uma técnica totalitária da tomada e da conservação do poder, isto é, recondução da dominação”.
A compreensão que eles fazem da história do homem e de sua racionalidade leva-os a defender a primazia do sujeito, e sua emancipação. A análise do esclarecimento como advindo dos primórdios da civilização cria um peso histórico sobre ele, do retorno milenar do horror, que não pode ser entendido de uma perspectiva marxista teleológica ou hegeliana progressista. O uso da violência com fins de criar uma sociedade utópica encerra em si a mesma potência autodestrutiva e sem limites do esclarecimento. O que a trajetória histórica do esclarecimento mostra é que com sua força de autodestruição, ao separar o objeto do sujeito a fim de dominá-lo, acabou causando o processo de extinção do próprio sujeito. A sociedade atual da administração total da vida produz uma massa de homens manipuláveis, sendo que o sujeito histórico e responsável está extinto – extinguindo-se a idéia de proletariado como sujeito histórico. O ímpeto revolucionário para criar uma sociedade totalmente controlada acaba por levar ao mesmo caminho de dominação, já que não se desliga da racionalidade moderna. Adorno e Horkheimer fazem, portanto, uma análise pessimista e crítica da sociedade, mas não abandonam o desejo otimista de ver a humanidade emancipada da própria dominação. Criam, portanto, um projeto que retoma certas características kantianas de eterna autocrítica da razão, diferente da idéia de Marx de conciliação da teoria e da práxis – visando em um futuro indeterminado uma construção autoconsciente dos homens de sua própria história, reconciliados com eles próprios e com a natureza. Uma análise mais correta a respeito desse projeto é indispensável sem uma análise dos textos posteriores à Dialética do Esclarecimento – o que não caberia pela proposta deste trabalho.
Conclui-se essa idéia com o último parágrafo do esboço de “Para uma crítica da filosofia da história”, presente na última seção da Dialética: “Visto que a história enquanto correlato de uma teoria unitária, como algo de construível, não é o bem, mas justamente o horror, o pensamento, na verdade é um elemento negativo. A esperança de uma melhoria das condições, na medida em que não é uma ilusão, funda-se menos na asseveração de que elas seriam as condições garantidas, estáveis e definitivas, do que precisamente na falta de respeito por tudo aquilo que está tão solidamente fundado no sofrimento geral. A paciência infinita, o impulso delicado e inextinguível que leva a criatura a buscar a expressão e a luz, que parece abrandar e apaziguar a si mesma a violência da evolução criadora, não prescreve, como as filosofias racionais da história, nenhuma práxis determinada como a práxis salvadora, nem sequer a não-resistência. O primeiro clarão da razão, que se anuncia nesse impulso e se reflete no pensamento recordante do homem, encontrará, mesmo em seu dia mais feliz, sua contradição insuperável: a fatalidade que a razão sozinha não consegue mudar”.
Bibliografia.
- ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006.
- BENJAMIN, Walter; “Sobre o conceito da história” in: Obras escolhidas volume 1: Magia e Técnica, Arte e Política, São Paulo, Editora Brasiliense.
- JAY, Martin; La imaginación dialéctica: una historia de la Escuela de Frankfurt y el Instituto de Investigación social, Madrid, Taurus Ediciones, 1974.
- MATOS, Olgária C. F.; Os arcanos do inteiramente outro: a Escola de Frankfurt, a Melancolia e a Revolução, São Paulo, Editora Brasiliense, 1989.

terça-feira, 15 de julho de 2008

O que é Filosofia?


Filosofia é a capacidade de manter sempre em vista uma utopia que – como um horizonte – jamais será alcançada; mas que nos faz caminhar, ao invés de parar e ficar pastando feito cordeirinhos mansos à espera do abate.

As pessoas têm passatempos diferentes. Enquanto umas dedicam seu tempo livre a trabalhos manuais, outras praticam algum esporte, vão ao cinema, assistem tevê ou "navegam" na Internet. Há, também, as que gostam de ler – e, em se tratando de leitura, enquanto umas se entretêm com jornais ou revistas, outras preferem livros. Gosto não se discute. Se você se interessa pelas fofocas do mundo artístico, há quem se interesse por verbetes de alguma enciclopédia; se você acompanha todos os jogos de algum campeonato, precisa aceitar que há quem considere isso uma chatice.
Preferências pessoais à parte, será que existe alguma coisa que interesse a todos, sem exceção? Existem, sim, questões que deveriam interessar a todas as pessoas. E é sobre tais questões que trata este artigo.
Qual é a coisa mais importante da vida? Bem… A resposta depende daquele a quem a pergunta é formulada. Quem está com sede, responderá: “Água”. Quem está com fome: “Comida”. Quem vive ao relento: “Abrigo”. Quem está atolado em dívidas: “Dinheiro”.
“Saco vazio”, diz o ditado, “não pára em pé”. Mas, uma vez satisfeitas as nossas necessidades físicas, restará algo a satisfazer? Claro que sim! Uma vez satisfeito o corpo, vêm as necessidades da mente e suas perguntas inquietantes: “Quem somos?”, “De onde viemos?”, “Para aonde vamos?”, “Por que vivemos?”. Interessar-se por tais questões é tocar um problema que acompanha o ser humano desde sempre – e tentar ignorá-las é abdicar da condição humana, fazer-se refém de toda sorte de charlatões, transformar-se em coisa e ser consumido pelo fogo da vulgaridade.
O que é “certo”? O que é “errado”? Há algo de “absoluto” que sirva de referência às nossas ações? Ou será tudo “relativo”, dependendo de época e de lugar? Deus existe? Ou será que inventamos deuses e os fazemos portadores de nossas “verdades” e de nossos interesses? Perguntas assim sempre foram feitas, independentemente de tempo e de lugar. São perguntas que não querem calar! Perguntas que fazem de nós seres pensantes – e não, tão-somente, seres viventes. Perguntas que nos unem naquilo a que podemos dar o nome de “comunidade humana”. Perguntas que questionam – e sempre questionaram! – aquilo que está posto como “verdade” mas que não nos convém. Perguntas… filosóficas.
O que é Filosofia? Filosofia é a faculdade de manter viva a curiosidade da infância e a rebeldia da adolescência. Filósofos são como crianças que não cessam de se admirar (Platão) e de se espantar (Aristóteles) diante de um mundo que parece renascer novo a cada aurora. Filósofos são como adolescentes que não aceitam os limites impostos pelo “já pensado”, pelo “já dito” e pelo “já feito”. Filosofia é a capacidade de manter sempre em vista uma utopia que – como um horizonte – jamais será alcançada; mas que nos faz caminhar, ao invés de parar e ficar pastando feito cordeirinhos mansos à espera do abate.
Para um filósofo, a busca começa onde termina a busca daqueles que, como burros, andam em círculos perseguindo a cenoura que lhe é oferecida por aqueles que exploram seu trabalho. Filósofos sabem que as respostas jamais serão encontradas nos jornais, nas revistas, nos livros, na tevê ou na Internet – mas sabem que, como numa história policial, mesmo que um crime jamais seja solucionado, a solução existe e depende dos que persistem em buscá-la. Filosofia não é para quem espera acontecer: é para quem sabe e faz a hora.
“Para muitas pessoas”, escreve Jostein Gaarder em O mundo de Sofia, “o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho que um mágico tira de uma cartola que, há poucos instantes, estava vazia.” Mas uma coisa é sabermos que isso não passa de um truque de mágica; outra, bem diferente, é nos colocarmos no lugar do coelhinho e nos darmos conta de “que estamos fazendo parte de algo misterioso” que “gostaríamos de poder explicar”. Filósofos talvez sejam isso: “Bichinhos microscópicos que vivem na base dos pêlos do coelho” e que se erguem “a fim de poder olhar bem dentro dos olhos do grande mágico”.
Novo Hamburgo, 5 de agosto de 2005.
Esta página faz parte do sítio “Crônicas de Martinho Carlos Rost”.

René Descartes e o Penso logo Existo

Na França do século 17 viveu um pensador que tentou aplicar as leis da Matemática à Filosofia. O nome dele é René Descartes.


“Tudo o que pertence à Lógica. Porque a Matemática e a Lógica são conceitos quase inseparáveis. Ninguém sabe onde começa a Matemática e termina a Lógica, ou vice-versa”, .


“Eu tenho verdadeiro pavor a misticismo. Machismo, racismo, pornografia e superstição, porque é ilógico e traz prejuízo”


Foi no pensamento, que Descartes fundamentou a verdade que tanto buscava, quatro séculos atrás.
Descartes, além de filósofo, foi um grande matemático. Ele acreditava que a Natureza funciona como uma máquina. Tudo o que existe nela pode ser traduzido em equações.
“O Descartes foi uma pessoa que de certa forma trouxe a Natureza para o papel”, avalia o físico Marcelo Gleiser.
Mas, antes, o filósofo precisou encontrar um ponto de apoio firme.
Na busca por uma verdade tão simples e clara quanto uma conta de somar, ele procurou derrubar velhas crenças, falsas opiniões e impressões enganosas.
Um dia, sentado sozinho diante de uma lareira, Descartes começou a duvidar de tudo o que até então acreditava. Ele pensou: “Há algum tempo percebi que recebi muitas falsas opiniões como verdadeiras. Eu precisava tentar, uma vez em minha vida, me desfazer de todas as falsas opiniões. Até encontrar um ponto fixo, uma verdade.”
Descartes duvidou dos sentidos, do que podia ver e ouvir: “Como posso ter certeza de que estou aqui, sentado diante do fogo? Como posso ter certeza de que essas mãos são minhas? Os loucos chegam a acreditar que são reis. E quantas vezes eu sonhei que estava nessa cadeira, vestindo essa roupa? Mas, mesmo sonhando, devo admitir que dois mais dois são quatro, e que o quadrado tem quatro lados. Será que encontrei uma verdade? Mas e se um deus enganador, um gênio maligno colocou todas essas verdades em minha cabeça? Como posso ter certeza de que tudo isso não é um engano?”
Depois de derrubar todas as falsas impressões, Descartes chegou à seguinte conclusão: “Posso duvidar de tudo, mas tenho certeza de que estou aqui, pensando, duvidando. Sou uma coisa que duvida, que pensa. Penso, logo existo.”
Debaixo dos escombros, Descartes encontrou um ser que pensa, que usa a razão. A verdade não estava mais no saber dos grandes mestres. A razão era o único instrumento que o homem deveria utilizar para entender o mundo, a única coisa confiável. A partir daí, Descartes reconstruiu toda a sua visão do Universo. Isso representou uma revolução na história do pensamento.
Mas essa verdade encontrada por Descartes no processo de dúvida é tão segura quanto ele pensava? Será que o “eu” é um lugar firme e seguro, capaz de sustentar a verdade? Existe apenas um único “eu” – o “eu” que pensa?
“Eu acredito que não seja um eu só, sejam vários ‘eus’. A gente é um com a mãe, um com o filho, um com a namorada, um com o amigo, um no trabalho, outro no telefone. Então, temos que assumir essa multiplicidade. Eu acho que é mais real do que ficar procurando aquele ‘eu’ fixo, se perguntando ‘quem sou eu?’”, diz o músico Paulinho Moska.
Quem garante que a verdade imutável que Descartes tanto procurou também não era uma ilusão? É possível que a parte mais interessante de toda essa história não esteja na conclusão, e sim no caminho que o filósofo trilhou até ela. O caminho da dúvida.
“É fundamental você duvidar. Você só aprende quando você duvida. Afinal de contas, se a gente achasse que já soubesse tudo, a gente nunca ia aprender mais nada. Então, o fato de a gente duvidar das coisas é muito importante para que a gente possa aprender sobre o mundo”, diz o físico Marcelo Gleiser.

Espinosa e a alegria




Viviane Mosé




Para Espinosa, Deus não criou o mundo, ele é o mundo. Em outras palavras, tudo o que existe no mundo é Deus, que também pode ser pensado como a natureza, ou a substância infinita.Ao contrário da tradição filosófica, Espinosa não divide o mundo em dois. Para ele, tudo é um. Tanto os corpos como as almas, ou o pensamento, derivam de uma mesma substância, que se manifesta nos corpos de uma maneira e, nos espíritos, de outra. Mas nenhum é superior ao outro. Os dois manifestam a mesma coisa: a natureza, que ele chama de Deus.Da mesma forma, para ele, não existe bem e mal, mas bom e mau encontro. Para qualquer forma existente no mundo, há dois tipos básicos de encontro: um bom e um mau encontro de corpo, ou de alma.É da natureza do corpo, incluindo o corpo humano, afetar e ser afetado por outros corpos. Se o corpo que nos afeta se compõe com o nosso, a sua capacidade de agir se adiciona à nossa, e provoca um aumento de nossa potência. Isto é alegria.Um mau encontro é aquele em que um corpo que se relaciona com o nosso não combina com ele e tende a decompor, ou destruir, a relação do nosso corpo consigo mesmo, e com os outros, o que nos leva à diminuição e, conseqüentemente, à tristeza. O mesmo acontece com a alma.O afeto é, então, a potência de agir de um corpo. Quando a potência de agir aumenta, sinto alegria; e, quando diminui, sinto tristeza. Para ele, a única afeição é a alegria. Todos os outros afetos são derivações dela. A tristeza é somente ausência de alegria. O amor é a alegria acompanhada de uma causa exterior. Assim como o ódio é a ausência de alegria acompanhada de uma causa exterior.Por isso, enquanto nossos afetos estiverem à mercê dos encontros, ou de causas exteriores a nós, seremos marcados pela impotência, porque isso nos impede de agir. O que Espinosa chama de afetos ativos ou ações, supõe que estejamos de posse de nossa capacidade de agir. É aí que entra a alma ou o espírito.Se tanto a alma quanto o corpo manifestam a natureza, que é Deus, então uma idéia adequada é capaz de ordenar uma paixão inadequada. Uma paixão deixa de ser uma paixão e se torna uma ação tão logo tenhamos dela uma idéia clara e distinta. Portanto, a idéia não deve afastar as paixões – ao contrário, deve permitir que se manifestem como ação. O pensamento serve para permitir a alegria.A alegria, segundo Espinosa, não precisa de uma causa exterior, muito menos de uma causa. O motivo da alegria, quando existe, é apenas um impulsionador, que nos leva a uma experiência muito maior: a potência de viver. Toda alegria é alegria de viver.