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quarta-feira, 16 de abril de 2008

Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

Karl Marx
Na Alemanha, a crítica da religião chegou, no essencial, ao
fim. A crítica da religião é a premissa de toda crítica.
A existência profana do erro ficou comprometida, uma vez
refutada sua celestial oratio pro aris et focis [oração pelo lar e pelo
ócio].
O homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade
fantástica do céu, onde buscava um super-homem, já não se sentirá
inclinado a encontrar somente a aparência de si próprio, o nãohomem,
já que aquilo que busca e deve necessariamente buscar é a
sua verdadeira realidade.
A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião:
este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a
autoconsciência e o autosentimento do homem que ainda não se
encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato,
isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a
sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam
uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo
invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio
enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu
entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão
geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da
essência humana por que a essência humana carece de realidade
concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a
luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual.
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de
outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida,
o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação
carente de espirito. É o ópio do povo.
A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida,
enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as
ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição
que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o
germe da critica do vale de lágrimas que a religião envolve numa
auréola de santidade.
A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias,
não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou
consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva.
A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e
organize sua realidade como um homem desenganado que recobrou a
razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu
verdadeiro sol. A religião é apenas um sol fictício que se desloca em
torno do homem enquanto este não se move em torno de si mesmo.
Assim, superada a crença no que está além da verdade, a missão da
história consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E,
como primeiro objetivo, uma vez que se desmascarou a forma de
santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está à
serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação
em suas formas não santificadas. Com isto, a crítica do céu se
converte na crítica da terra, a critica da religião na critica do direito, a
crítica da teologia na crítica da Política.
A exposição seguinte - uma abordagem a este trabalho - não se
prende diretamente ao original, senão a uma cópia deste, à filosofia
alemã do direito e do Estado, pelo simples fato de se ater à Alemanha.
Se nos quiséssemos ater ao status quo alemão, ainda que da única
maneira adequada, isto é, de modo negativo, o resultado continuaria a
ser anacrônico. A mesma negação de nosso presente político já se
acha coberta de pó no sótão de trastes velhos dos povos modernos.
Ainda que nos recusemos a recolher estes materiais empoeirados,
continuaremos conservando os materiais sem poeira. Ainda que
neguemos as situações existentes na Alemanha de 1843, apenas nos
situaremos, segundo a cronologia francesa, em 1789, e ainda menos
no ponto focal dos dias atuais.
E o caso da história alemã gabar-se de um movimento ao qual
nenhum povo do firmamento histórico se adiantou a ela nem a seguirá.
Com efeito, os alemães compartem as restaurações dos povos
modernos, sem haver participado de suas revoluções. Passamos por
uma restauração, em primeiro lugar, porque outros povos se
atreveram a fazer uma revolução e, em segundo lugar, porque outros
povos sofreram uma contra-revolução; a primeira vez porque nossos
senhores tiveram medo e a segunda porque não o tiveram. Tendo à
frente nossos pastores, só uma vez nos encontramos em companhia
da liberdade: no dia de seu enterro.
Uma escola que legitima a infâmia de hoje com a infâmia de ontem;
uma escola que declara ato de rebeldia todo grito do servo contra o
knut, da mesma maneira que este é um knut pesado de anos,
tradicional, histórico; uma escola a que a história só mostre seu a
posteriori, como o Deus de Israel a seu servo Moisés, numa palavra, a
Escola histórica do Direito teria sido inventada pela história alemã se
já não fosse por si uma invenção desta. É Shylock, mas o criado
Shylock, que por cada libra de carne cortada do coração do povo, jura
e perjura por sua escritura, por seus títulos históricos, por seus títulos
cristão-germânicos.
Em troca, certos entusiastas bondosos, germanistas pelo sangue e
liberais pela reflexão, vão buscar além da história, nas selvas
teutônicas virgens, a história da nossa liberdade. Mas, se só se
encontra na selva, em que se distingue a história da nossa liberdade
da história da liberdade do javali? Além disso, é fato sabido que
quanto mais alguém se interna no bosque, tanto mais ressoa sua voz
fora deste. Por conseguinte, deixemos em paz a selva virgem
teutônica.
Guerra aos estados de coisas alemães! É certo que se encontram
abaixo do nível da história, abaixo de toda critica, mas continuam a
ser, apesar disto, objeto de crítica, assim como o criminoso, por não
se achar abaixo do nível da humanidade, não deixa de ser objeto do
verdugo. Na luta contra eles, a crítica não é uma paixão do cérebro,
mas o cérebro da paixão. Não é o bisturi anatômico, mas uma arma.
Seu objeto é o adversário, que não procura refutar, mas destruir. O
espírito daquelas situações já foi refutado. Não são dignas de serem
lembradas; devem ser desprezadas como existências proscritas. Não
há necessidade da crítica esclarecer este objeto frente a si mesma,
pois dele já não se ocupa. Esta crítica não se conduz como um fim em
si, mas, simplesmente, como um meio. Seu sentimento essencial é a
indignação; sua tarefa essencial, a denúncia.
Trata-se de descrever a surda pressão mútua de todas as esferas
sociais, umas sobre as outras, a alteração geral e imprudente, a
limitação que tanto se reconhece quanto se desconhece, enquadrada
dentro do modelo de um sistema de governo, que, vivendo da
conservação de tudo aquilo que é lamentável, não é outra coisa senão
o que há de lamentável no governo. Espetáculo lamentável! A divisão
da sociedade até o infinito nas raças mais diversas, que se enfrentam
umas às outras com pequenas antipatias, más intenções e brutal
mediocridade e que, precisamente em razão de sua mútua posição
cautelosa são tratadas por seus senhores, Sem exceção e com
algumas diferenças, como existências sujeitas a suas concessões. Até
isto, até o fato de se verem dominadas, governadas e possuídas tem
que ser reconhecido e confessado por elas como uma concessão do
céu! E, por outro lado, aqueles senhores, cuja grandeza se encontra
em relação inversa ao numero delas!
A crítica que se ocupa deste conteúdo é a crítica da competição.
Durante a competição não interessa saber se o adversário é nobre, da
mesma categoria, se é um adversário interessante; trata-se de vencêlo.
Trata-se de não conceder aos alemães nem um só instante de
ilusão e de resignação. Há que tornar a opressão real ainda mais
opressiva, acrescentando àquela a consciência da opressão; há que
tornar a infâmia ainda mais infamante, ao proclamá-la. Há que pintar a
todas e a cada uma das esferas da sociedade alemã como a partie
honteuse [partes pudendas] da sociedade alemã; há que obrigar estas
relações escravizadas a dançar, cantando-lhes sua própria melodia.
Há que ensinar o povo a ter pavor de si mesmo, para infundir-lhe
ânimo. Com isto, se satisfaz uma indisfarçável necessidade do povo
alemão; as necessidades dos povos são, em sua própria pessoa, os
últimos fundamentos de sua satisfação.
Esta luta contra o status quo alemão tampouco carece de interesse
para os povos modernos, pois o status quo alemão é a consagração
franca e sincera do antigo regime, e o antigo regime, a debilidade
oculta do Estado moderno. A luta contra o presente político alemão é a
luta contra o passado dos povos modernos; as reminiscências deste
passado continuam a pesar ainda sobre eles e a oprimi-los. É
instrutivo para estes povos ver como o antigo regime, que neles
conheceu sua tragédia, representa agora sua comédia; é instrutivo
para estes povos vê-lo como o espectro alemão. Sua história foi
trágica enquanto encarnou o poder preexistente do mundo e a
liberdade como uma ocorrência pessoal; numa palavra, enquanto
acreditou e devia acreditar na sua legitimidade. Enquanto o antigo
regime e a ordem existente no mundo lutavam contra um mundo em
estado de gestação, trazia de sua parte um erro histórico-universal e
não de caráter pessoal. Portanto, sua catástrofe foi trágica.
Pelo contrário, o atual regime alemão, que é um anacronismo, uma
contradição flagrante com todos os axiomas geralmente reconhecidos,
a nulidade do antigo regime posta em evidência frente ao mundo
inteiro, só imagina crer em si próprio e exige do inundo a mesma fé
ilusória. Se acreditasse em seu próprio ser, acaso iria escondê-lo sob
a aparência de um ser estranho e procurar sua salvação na hipocrisia
e no sofisma? Não, o moderno regime antigo já não é mais do que o
comediante de uma ordem social cujos heróis reais já morreram. A
história é conscienciosa e passa por muitas fases antes de enterrar as
velhas formas. A comédia é a última fase de uma forma históricouniversal.
Os deuses da Grécia, já tragicamente feridos no Prometeu
acorrentado de Ésquilo, morreram ainda outra vez, comicamente, nos
colóquios de Luciano. Por que esta trajetória histórica? Para que a
humanidade possa separar-se alegremente de seu passado. Este
alegre destino histórico é que nós reivindicamos para as potências
políticas da Alemanha.
Não obstante, tão logo a moderna realidade político-social se veja
submetida à crítica, isto é, tão logo a critica ascende ao plano dos
problemas verdadeiramente humanos é que se encontra fora do status
quo alemão, pois de outro modo abordaria seu objeto por baixo de si
mesma. Um exemplo: a relação entre a indústria, o inundo da riqueza
em geral e o mundo político é um problema fundamental da época
moderna. De que forma este problema começa preocupar os
alemães? Sob a forma de normas protetoras, de sistema proibitivo, da
economia nacional. O germanismo passou dos homens a matéria e,
um belo dia, nossos donos do algodão e nossos heróis do ferro viramse
convertidos em patriotas. Assim, pois, na Alemanha começa-se
pelo reconhecimento da soberania do monopólio rumo ao interior,
conferindo-lhe a soberania rumo ao exterior. Isto significa que na
Alemanha se começa por onde terminam a França e a Inglaterra. A
velha situação insustentável contra a qual se levantam teoricamente
estes países e que só são suportáveis como são suportados os
grilhões, é saudada na Alemanha como a primeira luz do amanhecer
de um belo futuro, que apenas se atreve a passar de uma ladina teoria
à mais implacável prática. Enquanto na França e na Inglaterra o
problema é colocado em termos de economia política ou império da
sociedade sobre a riqueza, na Alemanha os termos são outros:
economia nacional ou império da propriedade privada sobre a
nacionalidade. Portanto, na França e na Inglaterra trata-se de abolir o
monopólio, que chegou a suas últimas conseqüências; na Alemanha,
trata-se de levar o monopólio a suas últimas conseqüências, No
primeiro caso, trata-se da solução; no segundo, simplesmente da
contradição. Exemplo suficiente da forma alemã que ali adotam os
problemas modernos, de como nossa história, tal qual o recruta
imbecil, não teve até agora outra missão senão a de praticar a repetir
exercícios já feitos.
Por conseguinte, se todo o desenvolvimento da Alemanha não saísse
dos marcos do desenvolvimento político alemão, um alemão apenas
poderia, muito bem, participar dos problemas do presente, do mesmo
modo como um russo deles pode participar. Mas, se um indivíduo livre
não se acha vinculado às cadeias da nação, ainda menos livre se vê a
nação inteira diante da libertação de um indivíduo. Os citas não
investiram um só passo contra a cultura grega porque a Grécia
contasse um deles entre seus filósofos.
Por sorte, nós, alemães, não somos citas.
Assim como os povos antigos viveram sua pré-história na imaginação,
na mitologia, nós, alemães, vivemos nossa pós-história no
pensamento, na filosofia. Somos contemporâneos filosóficos do
presente, sem ser seus contemporâneos históricos. A filosofia alemã é
o prolongamento ideal da história da Alemanha. Portanto, se ao invés
das oeuvres incompletes [Obras incompletas] de nossa história real,
criticamos as oeuvres posthumes [Obras póstumas] de nossa história
ideal, a filosofia, nossa crítica figura no centro dos problemas dos
quais diz o presente: That is the question [Eis a questão].
O que para os povos progressistas é a ruptura prática com as
situações do Estado moderno, na Alemanha, onde estas situações
nem sequer existem, isto significa, antes de tudo, a ruptura critica com
o reflexo filosófico destas situações.
A filosofia alemã do Direito e do Estado é a única história alemã que
se acha a par com o presente oficial moderno. Por isto, o povo alemão
não tem outro remédio senão incluir também esta sua história feita de
sonhos entre suas situações existentes e submeter à crítica não só
estas mesmas situações, mas, também e ao mesmo tempo, seu
prolongamento abstrato. O futuro deste povo não pode limitar-se nem
à negação de suas condições estatais e jurídicas reais, nem à
execução indireta das condições ideais de seu Estado e de seu direito,
já que a negação direta de suas condições reais já está envolvida em
suas condições ideais e a execução indireta de suas condições ideais
quase a fez sobreviver ao contemplá-las nos povos vizinhos. Assim,
ao reclamar a negação da filosofia, o partido político prático da
Alemanha tem toda razão. Seu erro não reside na exigência, mas em
deter-se na simples exigência, que não coloca nem pode colocar
seriamente em prática. Acredita colocar em prática aquela negação
pelo fato de voltar as costas à filosofia e de resmungar, olhando para o
lado oposto, umas tantas frases banais e mal-humoradas. A limitação
de seu horizonte visual não inclui também a filosofia da realidade
alemã no Estreito de Bering, nem chega a imaginá-la quimericamente,
inclusive, entre a prática alemã e as teorias que a servem. Exige-se
uma conexão com os germes reais da vida, mas esquece-se que o
germe real da vida do povo alemão só brotou, até agora, de sua caixa
craniana. Numa palavra, não podereis superar a filosofia sem realizála.
A mesma injustiça, só que com fatores inversos, cometeu o partido
político teórico, que partia da filosofia.
Este partido só via na luta atual a luta critica da filosofia com o mundo
alemão, sem imaginar sequer que a filosofia anterior pertencia ela
mesma a este mundo e era um complemento, ainda que apenas seu
complemento ideal. Assumia uma atitude crítica frente à parte
contrária, mas não adotava um comportamento crítico para consigo
mesmo, já que partia das premissas da filosofia e, ou se detinha em
seus resultados adquiridos ou apresentava como postulados e
resultados diretos da filosofia, os postulados e resultados de outra
origem, embora estes supondo que sejam legítimos - só podem
manter-se de pé, pelo contrário, mediante a negação da filosofia
anterior, da filosofia como tal. Propomo-nos a tratar mais a fundo deste
partido. Seu erro fundamental pode resumir-se assim: acreditava
poder realizar a filosofia sem superá-la.
A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que encontra em
Hegel sua expressão máxima, a mais conseqüente e a mais rica, é
simultaneamente as duas coisas, tanto a análise crítica do Estado
moderno e da realidade a ele relacionada como a negação decisiva de
todo o modo anterior de consciência política e jurídica alemã, cuja
expressão mais nobre, mais universal, elevada à ciência, é
precisamente a mesma filosofia especulativa do direito. Assim como a
filosofia especulativa do direito - este pensamento abstrato e
superabundante do Estado moderno cuja realidade continua a ser o
além, apesar deste além se encontrar do outro lado do Reno - só
poderia processar-se na Alemanha, assim também, por sua vez e
inversamente, a imagem alemã, conceitual, do Estado moderno -
abstraída do homem real - só se tornou uma possibilidade porque e
enquanto o mesmo Estado moderno se abstrai do homem real ou
satisfaz o homem total de modo puramente imaginário. Em política, os
alemães pensam o que os outros povos fazem. A Alemanha era sua
consciência teórica. A abstração e a arrogância de seu pensamento
corria sempre em parelha com a limitação e a mesquinhez de sua
realidade. Por conseguinte, se o status quo do Estado alemão exprime
a perfeição do antigo regime, o acabamento da lança cravada no
Estado moderno, o status quo da consciência do Estado alemão
expressa a imperfeição do Estado moderno, a falta de consistência de
seu próprio corpo.
Enquanto adversário decidido do modo anterior de consciência política
alemã, o Estado orienta a crítica da filosofia especulativa do direito
não para si mesma, mas para tarefas cuja solução exige apenas um
meio: a prática.
Indagamo-nos: pode a Alemanha chegar a uma prática à la hauter des
principes [à altura dos princípios], isto é, a uma revolução que a eleve
não só ao nível oficial dos povos modernos mas, também, ao nível
humano que será o futuro imediato destes povos!
As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas;
a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria
também se converte em força material uma vez que se apossa dos
homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que
demonstre sua verdade face ao homem, desde que se torne radical.
Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem,
porém, a raiz é o próprio homem. A prova evidente do radicalismo da
teoria alemã e, portanto, de sua energia prática, consiste em saber
partir decididamente da superação positiva da religião. A crítica da
religião derruba a idéia do homem cama essência suprema para si
próprio. Por conseguinte, com o imperativo categórico mudam todas
as relações em que o homem é uns seres humilhados, subjugados,
abandonados e desprezíveis, relações que nada poderia ilustrar
melhor do que aquela exclamação de um francês ao tomar
conhecimento da existência de um projeto de criação do imposto
sobre cães: Pobres cães! Querem tratá-los como se fossem pessoas!
Até historicamente a emancipação teórica tem um interesse
especificamente prático para a Alemanha. O passado revolucionário
da Alemanha é, de fato, um passado histórico: é a Reforma. Como
então no cérebro do frade, a revolução começa agora no cérebro do
filósofo.
Lutero venceu efetivamente a servidão pela devoção porque a
substituiu pela servidão da convicção. Acabou com a fé na autoridade
porque restaurou a autoridade da fé. Converteu sacerdotes em leigos
porque tinha convertido leigo em sacerdotes. Libertou o homem da
religiosidade externa porque erigiu a religiosidade no interior do
homem. Emancipou o corpo das cadeias porque sujeitou de cadeias o
coração.
Mas, se o protestantismo não foi a verdadeira solução, representou a
verdadeira colocação do problema. Já não se tratava da luta do leigo
com o sacerdote que existe fora dele, mas da luta com o sacerdote
que existe dentro de si próprio, com sua natureza sacerdotal. E, se a
transformação protestante do leigo alemão em sacerdote emancipou
os papas leigos, os príncipes, com toda sua clerezia, se emancipou
privilegiados e filisteus, a transformação filosófica dos alemães com
espírito sacerdotal em homens emancipará o povo. Mas, do mesmo
modo que a emancipação não se deteve nos príncipes, tampouco a
secularização dos bens se deterá no despojo da igreja, realizada,
sobretudo pela hipócrita Prússia. A guerra dos camponeses, fato mais
radical da história alemã, lançou-se contra a teologia. Hoje, com o
fracasso da própria teologia, o fato mais servil da história alemã, nosso
status quo, se lançará contra a filosofia. As vésperas da Reforma, a
Alemanha oficial era o servo mais submisso de Roma. As vésperas de
sua revolução, é o servo submisso de algo menos que Roma, Prússia
e Áustria, de fidalguetos rurais e filisteus,
Não obstante, uma dificuldade fundamental parece opor-se a uma
revolução alemã radical.
Com efeito, as revoluções necessitam de um elemento passivo, de
uma base material. A teoria só se realiza numa nação na medida que
é a realização de suas necessidades. Ora, ao imenso divórcio
existente entre os postulados do pensamento alemão e as respostas
da realidade alemã corresponderá o mesmo divórcio existente entre a
sociedade alemã e o Estado e consigo mesma! Não basta que o
pensamento estimule sua realização; é necessário que esta mesma
realidade estimule o pensamento.
Todavia, a Alemanha não escalou simultaneamente com os povos
modernos as fases intermediárias da emancipação política.
Praticamente,. não chegou sequer às fases que superou teoricamente.
Como poderia, de um salto mortal, remontar-se não só sobre seus
próprios limites, como também e ao mesmo tempo, sobre os limites
dos povos modernos, sobre limites que na realidade devia sentir e aos
quais devia aspirar como a emancipação de seus limites reais! Uma
revolução radical só pode ser a revolução de necessidades radicais,
cujas premissas e lugares de origem parecem faltar completamente.
Não obstante, se a Alemanha só abstratamente acompanhou o
desenvolvimento dos povos modernos, sem chegar a participar
ativamente das lutas reais deste, não é menos verdade que, de outro
lado, partilhou os sofrimentos deste mesmo desenvolvimento, sem
usufruir seus benefícios e satisfações parciais. A atividade abstrata de
um lado corresponde o sofrimento abstrato do outro. Assim, numa bela
manhã, a Alemanha se encontrará em nível idêntico à decadência
européia antes mesmo de haver atingido o nível da emancipação
européia. Poderíamos compará-la a um idólatra que agonizasse,
vítima do cristianismo.
Fixemo-nos, antes de mais nada, nos governos alemães, e os
veremos de tal modo impulsionados pelas condições da época, pela
situação da Alemanha, pelo ponto de vista da cultura alemã e,
finalmente, por seu próprio instinto certeiro, a combinar os defeitos
civilizados do mundo dos Estados modernos, cujas vantagens não
possuímos, com os defeitos bárbaros do antigo regime, de que nos
podemos jactar até a saciedade, que a Alemanha, senão por
prudência, pelo menos à falta desta tem que participar cada vez mais
da constituição de Estados que estão muito além de seu status quo.
Acaso, por exemplo, há no mundo algum país que partilhe tão
simplesmente como a chamada Alemanha constitucional todas as
ilusões do Estado constitucional sem partilhar de suas realidades. Ou
não teria que ser necessariamente uma ocorrência do governo alemão
o fato de associar os tormentos da censura aos tormentos das leis de
setembro na França, que pressupõem a liberdade de imprensa. Assim
como no panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações,
no sacro império romano germânico se reúnem os pecados de todas
as formas de estado. Que este ecletismo chegará a alcançar um nível
até hoje inimaginado, o garante, de fato, o enfado estético-político de
um monarca alemão que aspira desempenhar, se não através da
pessoa do povo, pelo menos em sua própria, se não para o povo, pelo
menos para si mesmo, todos os papéis da monarquia: a feudal e a
burocrática, a absoluta e a constitucional, a autocrática e a
democrática. A Alemanha, como a ausência do presente político
constituído num mundo próprio, não poderá derrubar as barreiras
especificamente alemães sem derrubar a barreira geral do presente
político.
Para a Alemanha, o sonho utópico não é a revolução radical, não é a
emancipação humana geral, mas, ao contrário, a revolução parcial, a
revolução meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares
do edifício. Sobre o que repousa uma revolução parcial, uma
revolução meramente política? No fato de emancipar uma parte da
sociedade burguesa e de instaurar sua dominação geral, no fato de
uma determinada classe empreender a emancipação geral da
sociedade a partir de sua situação especial. Esta classe emancipa
toda a sociedade, mas apenas sob a hipótese de que toda a
sociedade se encontre na situação desta classe, isto é, que possua,
por exemplo, dinheiro e cultura ou que possa adquiri-los.
Nenhuma classe da sociedade burguesa pode desempenhar este
papel sem provocar um momento de entusiasmo em si e na massa,
momento durante o qual confraterniza e se funde com a sociedade em
geral, com ela se confunde e é sentida e reconhecida como seu
representante geral, que suas pretensões e direitos são, na verdade,
os direitos e ai pretensões da própria sociedade, que esta classe é
realmente o cérebro e o coração da sociedade. Somente em nome
dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar
para si a dominação geral. E, para atingir esta posição emancipadora
e poder, portanto, explorar politicamente todas as esferas da
sociedade em benefício da própria esfera, não bastam por si sós a
energia revolucionária e o amor próprio espiritual. Para que coincidam
a revolução de um povo e a emancipação de uma classe especial da
sociedade burguesa, para que uma classe valha por toda a sociedade,
é necessário, pelo contrário, que todos os defeitos da sociedade se
condensem numa classe, que uma determinada classe resuma em si
as repulsas gerais, que seja a incorporação do obstáculo geral; é
necessário, para isto, que uma determinada esfera social seja
considerada como crime notório de toda a sociedade, de tal modo que
a emancipação desta esfera surja como autoemancipação geral. Para
que um estado seja par excellenee o estado de libertação, é
necessário que outro seja o estado de sujeição por antonomásia. O
significado negativo geral da nobreza e do clero franceses condicionou
a significação positiva geral da classe inicialmente delimitadora e
contraposta, da burguesia.
Todavia, todas as classes especiais da Alemanha carecem de
conseqüência, rigor, arrojo e intransigência capazes de convertê-las
no representante negativo da sociedade. Além do mais, todas
carecem da grandeza de espírito que pudesse identificar uma delas,
ainda que momentaneamente, com o espírito do povo; todas carecem
da genialidade que infunde o entusiasmo do poder político ao poder
material, da intrepidez revolucionária que lança o desafio ao inimigo:
Nada SOU e tudo deveria ser. Esse modesto egoísmo que faz valer e
permite que outros também façam valer suas próprias limitações é o
fundo básico da moral e da honradez de indivíduos e classes na
Alemanha. Por isto, a relação existente entre as diversas esferas da
sociedade alemã não é dramática, mas épica. Cada uma delas
começa a sentir e a fazer chegar às outras suas pretensões, não ao se
ver oprimida, mas quando as circunstâncias do momento, sem
intervenção sua, criam uma base social sobre a qual, por sua vez,
possa exercer pressão. Até mesmo o amor próprio moral da classe
média alemã repousa sobre a consciência de ser o representante
geral da mediocridade filistéia de todas as demais classes. Portanto,
não são apenas os reis alemães que ascendem ao trono mal à propos
[Inoportunamente], mas todas as esferas da sociedade burguesa, que
sofrem sua derrota antes de terem festejado a vitória, que
desenvolvem seus próprios limites antes de terem ultrapassado os
limites que se opõem a estes, que fazem valer sua pusilanimidade
antes de fazer valer sua arrogância, de tal modo que até mesmo a
oportunidade de desempenhar um grande papel desaparece antes de
existir e que cada classe, tão logo começa a lutar com aquela que lhe
está acima, vê-se envolvida na luta com aquela que lhe está abaixo.
Daí porque os príncipes estão em luta contra a burguesia, os
burocratas contra a nobreza e os burgueses contra todos eles,
enquanto o proletário começa a lutar contra o burguês. A classe média
nem sequer se atreve a conceber o pensamento da emancipação de
seu ponto de vista, já que o desenvolvimento das condições sociais,
do mesmo modo que o progresso da teoria política, se encarregam de
revelar este mesmo ponto de vista como algo antiquado ou, pelo
menos, problemático.
Na França, basta que alguém seja alguma coisa para querer ser todas
as coisas. Na Alemanha, ninguém pode ser nada se não quiser
renunciar a tudo. Na França, a emancipação parcial é o fundamento
da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação universal é a
conditio sine que non de toda emancipação parcial. Enquanto na
França é a realidade da emancipação gradual que tem de engendrar a
liberdade total, na Alemanha, ao contrário, é justamente a sua
impossibilidade. Na França, toda classe é um político idealista que se
sente como representante das necessidades sociais em geral, ao
invés de sentir-se como representante de uma classe especial. Por
isto, o papel emancipador passa por turnos, em movimento dramático,
entre as distintas classes do povo francês até atingir, finalmente, a
classe que já não realiza a liberdade social sob a hipótese de certas
condições que se encontram à margem do homem e que, não
obstante, foram criadas pela sociedade humana, mas que organiza
todas as condições de existência a partir da hipótese da liberdade
social. Pelo contrário, na Alemanha, onde a vida prática tão pouco tem
de espiritual assim como a vida espiritual de prático, nenhuma classe
da sociedade burguesa sente a necessidade nem a capacidade de
emancipação geral até ver-se obrigada a isto por sua situação
imediata, pela necessidade material, pelas suas próprias cadeias.
Onde reside, pois, a possibilidade positiva da emancipação alemã?
Resposta: na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma
classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade
burguesa; de um estado que é a dissolução de. todos os estados; de
uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos
universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque
não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a
violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico,
mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em
nenhuma espécie de contraposição particular com as conseqüências,
senão numa contraposição universal com as premissas do Estado
alemão; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem
se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e,
simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a
perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu
objetivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da
sociedade como uma classe especial é o proletariado.
O proletariado só começa a surgir na Alemanha, mediante o
movimento industrial que desponta, pois o que forma o proletariado
não é a pobreza que nasce naturalmente, mas a pobreza que se
produz artificialmente; não é a massa humana oprimida
mecanicamente pelo peso da sociedade, mas aquela que brota da
aguda dissolução desta e, em especial, da dissolução da classe
média, ainda que gradualmente, como se compreende, venham a
incorporar-se também a suas fileiras a pobreza natural e os servos
cristãos-germânicos da gleba
Ao proclamar a dissolução da ordem universal anterior, o proletariado
nada mais faz do que proclamar o segredo de sua própria existência,
já que ele é a dissolução de fato desta ordem universal. Ao reclamar a
negação da propriedade privada, o proletariado não faz outra coisa
senão erigir a princípio de sociedade aquilo que a sociedade erigiu em
princípio seu, o que já se personifica nele, sem intervenção de sua
parte, como resultado negativo da sociedade. O proletariado está
amparado, então, em relação ao mundo que nasce, da mesma razão
que assiste o rei alemão em relação ao mundo existente, ao
denominar o povo seu povo, como ao cavalo seu cavalo. Ao declarar o
povo sua propriedade privada, o rei se limita a expressar que o
proprietário privado é o rei.
Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais,
o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. Com a
mesma rapidez que o raio do pensamento penetra a fundo neste puro
solo popular, se efetuará a emancipação dos alemães como homens.
Resumindo e concluindo:
A única emancipação praticamente possível da Alemanha é a
emancipação do ponto de vista da teoria, que declara o homem
essência suprema do homem. Na Alemanha, a emancipação da Idade
Média só é possível como emancipação paralela das superações
parciais da Idade Média. Na Alemanha, não se pode derrubar nenhum
tipo de servidão sem derrubar todo tipo de servidão em geral. A
meticulosa Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar seu
próprio fundamento. A emancipação do alemão é a e emancipação do
homem. O cérebro desta emancipação é a filosofia; seu coração, o
proletariado. A filosofia não pode se realizar sem a extinção do
proletariado nem o proletariado pode ser abolido sem a realização da
filosofia.
Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo
gaulês anunciará o dia da ressurreição da Alemanha.
Texto de 1843.

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